Poesias

Godofredo Filho, o autor do livro Irmã Poesia.

Poeta lírico de Godofredo Filho, o autor do livro Irmã Poesia grande sensibilidade, herdeiro e continuador do lirismo típico da Bahia, ocupa um posto de alto relevo na história literária de sua terra, embora sua irradiação no resto do país não tenha sido proporcional por causa da limitação das edições de sua obra.


“O admirável cantador da Feira”. Assim a imprensa registrava os 80 anos de vida de Godofredo Filho, o poeta feirense autor de “Poema da Feira de Santana”, que encantou o poeta Manuel Bandeira ainda jovem no tempo do Modernismo. Em 1984 os seus oitenta anos de idade foram festivamente comemorados pela Academia Baiana de Letras onde ocupava a cadeira que tem como patrono o Barão de Cotegipe. Autor de “Samba Verde”, “Poema da Rosa, “Poema de Ouro Preto”, "Soneto do Vinho do Porto", “Ladeira da Misericórdia” e outros foi feita pelo acadêmic.



A Godofredo Filho, com respeito e admiração
O vinho bebido em tua boca
Doce, desce embriagando o corpo,
Num instante de delírio.
É uma alucinação entrelaçando terra e céu:
Inconfundíveis planos na lucidez...
De transpor todos os limites, a sensação
É uma presença constante em pleno transe.
Vinho. Ah, gosto de poesia triunfante!

Eva Dantas

“Escreve uma língua tão pura e tão alta que nos transporta para lá do tempo e do lugar”.
São palavras de Alceu amoroso Lima definidoras de Godofredo Filho, agora
continuada em Solilóquio e Sete sonetos do vinho.

O autor feirense comenta a tradição poética do vinho em entrevista a Raymundo Luiz Lopes, de forma a esclarecer o valor desse tema na sua poesia. Observem-se as duas interrogativas e respectivas respostas na íntegra:

RAYMUNDO – Porque, no seu universo poético, estão sempre presentes, formando mágica trilogia, o vinho, a rosa e a mulher?
GODOFREDO – Não só em nosso universo poético, mas, igualmente, no de todos aqueles que, desde milênios, de Hafiz a Paul-Jean Toulet, tiveram um sentido mais pungente do efêmero das coisas. Hoje o que nos importa para cantar é a sombra avassalante que vem, a compensar do frio, com a visão das
primeiras estrelas que ardem na escuridão. 

RAYMUNDO – Porque a produção de sete sonetos versando sobre o vinho?
GODOFREDO – São os vinhos generosos de nossa predileção e de nossa adega: - Porto, Madeira, Moscatel, Jerez, Málaga, Tokay e Constança. Ultimamente, só de raro em raro nos animamos a consumi-los, nos grandes dias. E é certo que cada um (e os há centenários) tem a sua história, a sua ficha, a sua numeração. Esses vinhos, mal comparando, são para nós como partituras de Mozart, de Haendel, de Bach, de Villa Lobos. Ou pinturas de Giorgione e de Parmigianino. Ou paisagem vesperal de nosso Alberto Valença. Há que respeitá-los, tomá-los sacramente, como num louvor à munificência do Senhor, e jamais abusar-lhes [sic] da força ou da magia. Orgulhamo-nos de que, numa referência a Sete Sonetos do Vinho, um de nossos melhores críticos literários tivesse escrito que são “dignos de Horácio e de Gôngora”.



Godofredo Filho lembra que o tema é universal. Depois informa que os vinhos dos títulos pertencem à sua adega. Em seguida faz comparações originais e inusitadas, como poeta que busca ultrapassar os limites da expressão. Por fim, recorda uma alusão feita aos seus sonetos, na fortuna crítica do livro Irmã Poesia, cujo autor é Alceu amoroso Lima que afirma:

... Em seguida, pelo prazer autenticamente requintado que a leitura de seus
sonetos, dignos de Horácio e de Gôngora, me proporciona. Como o nosso
Albano, dos tempos simbolistas, você se manteve fiel à sua mais pura
inspiração clássica, não neoclássica, nos campos do modernismo. Como um
Guilherme de Almeida, ou um Abgar Renault, ou um Odylo Costa Filho. Você
pertence a grey (ponho um ípsilon de propósito) que paira acima das
controvérsias. E escreve em língua tão pura e tão alta que nos transporta para lá
do tempo e do lugar. Haverá maior poder para a Poesia? (Lima)

As comparações são as mais diversificadas, com escritores espanhóis e brasileiros, ratificadas pela frase “Você pertence a grey que paira acima das controvérsias”. Pelo que se observa, não há realmente nenhuma contestação à poesia de GF. Quem a lê desfruta de temáticas diversas e embriaga-se com o vinho da poesia e com a poesia do vinho. Portanto, o poeta feirense conduz o leitor para tempos distantes e o coloca de volta no seu tempo – de agora – porque busca no antigo algo para celebrar o novo. Assim pode ser admirado por todos os gostos de leitura. Ou como escreveu Carvalho Filho:

Godofredo Filho é da Feira de Santana e da pauta de abril. Da pauta, palavra
constante e sintomática do bom escrever do poeta. Mas, da sua arte, o elemento
conhecido autoriza a afirmação de que ela se estende dos horizontes de morros,
de verdes e de azuis ao centro dos quais viu o mundo, à perseguição do
mistério, em nível poético de nítida ascensão, desses só atingidos pelos
espíritos que chegam conscientemente do alto da montanha e aí permanecem
jovens, vencendo o inesperado tentador dos dias e noites. Dessa peregrinação,
também pelos vinhedos Kaianianos, de margens sem segredos, mas muitos
perigos, o certo é que resultou obra cristalina, mesmo em sua tendência lógica
para arejada noturnidade. Resultou enfim o poeta alto e puro de estima e de
admiração da sua e da nossa terra. (Carvalho Filho)


Os sonetos do vinho foram escritos numa época, na qual diferentes estilos
praticamente se mesclavam, entre a tradição e a renovação de formas e
linguagens. Por outro lado, a sociedade do pós Segunda Guerra Mundial – e, no
Brasil, o aceleramento do processo de modernização – comportava tensões e
ambigüidades, fatores que podiam levar o homem/autor a refugiar-se no poema,
O vinho, desde a Antigüidade, sempre inspirou os poetas, que celebravam
ou dissimulavam suas angústias, dores, alegrias e tristezas por intermédio da
embriaguez lírica. Em GF a leitura dos seus poemas do vinho permite perceber
uma certa divagação que ativam os cinco sentidos, misturado-os, transformando
tudo em imagens. Isso reflete um estado de espírito ou um momento vivenciado
pelo escritor como tristezas, dores, alegrias, decepções, paixões, amores etc.



Soneto do Vinho do Porto
 
Fruto em verde ou de ígneo e azul, tocado
da música da alva. Ó tessitura
de esférico sabor, lúcido aroma
de pomo etéreo. Os beijos que não são.
Desliza em rota insone. E eu te procuro,
ó domador do tédio. E, travo e mel,
de teu conúbio vegetal ressumbram
no liquefeito olhar das feras bravas.
Que do xisto azumbrado a fulva luz
tornada em sumo e veludoso gosto
por sobre a calcedônia do desejo.
Vinho que sabe a amor sem fim, ocíduo
clarão que incide às tardes sobre o Douro,
ou de Andrômeda o riso e o de Canopo.
 
(Irmã Poesia, p. 253)